sexta-feira, 4 de março de 2011

Tornar se negra - Do fio ao colar


     Denegrir o branco do papel com as letras da minha caminhada me parece uma proposta estranhas ,pois nunca tive a oportunidade de escrever sobre mim,sempre fui craque em escrever e descrever a história dos outros.Mas farei! E vou inciar dizendo que eu era um fio e na minha caminhada fui juntando miçangas, hoje me considero uma mulher adornada de conhecimento e de consciência do que é ser negra.

      ...E o amor aconteceu entre meus pais e como fruto desse amor cheguei ao mundo no dia 04 de abril do ano de ( há! isso não interessa tanto rs) na cidade de Camamu.Saindo do interior vim com minha mãe para Salvador com apenas alguns meses de vida, passamos então a morar no bairro do Fazenda Garcia, local onde mora meus familiares paternos . E assim fui crescendo cercada do amor dos meus familiares, até que chegou o momento de sair do casulo familar para enfrentar um ambiente mais coletivo e assim fui matriculada em uma escola.
   
      Inicialmente estudei em uma escola particular no bairro do Garcia , lá foi onde pude começar a ver as particularidades caracteristicas existentes entre mim e os meus colegas brancos,em sua maioria.Essas particularidades por mim notadas vinham desde as características físicas até a distinção feita entre mim e meus "amiguinhos" pelos professores. Costumo dizer que a escola é o primeiro local onde uma criança negra é totalmente exposta as práticas racistas. Tendo em vista que é no ambiente educacional o local ondea criança negra começa negar a sua identidade enquanto negra.

     Ora! Como não me negar diante de tantos aspectos com os quais eu não me identificava devido as minhas características . Eu não era comparada aos personagens de histórias contadas pelos professores, eu nunca fazia parte das peças organizadas pela escola e nunca podia soltar meus cabelos nos dia do banho de mangueira, prática comum entre as outras crianças: a mim era negada sob a alegação da dificuldade de pentear meu cabelo depois. Essas e várias outras limitaçãoes somadas a falta de representividade negra dentro da escola fizeram com que eu me tornasse uma criança recalcada.
     Com o passar da minha idade fui tentando me libertar de tudo que me identificava como negra.Para assumir características físicas e culturais de uma história que não me pertencia, alisei os cabelos,comecei a me vestir como as colegas brancas e negava as religiões de matrizes africanas.O mais engraçado de tudo isso era que eu fazia de tudo para me adequar aos aspectos exigidos pela sociedade racista e por mais que eu fizesse,eu não era aceita e as exigências sociais continuavam a aparecer; na mídia,na escola ,com os amigos, cada vez mais e em níveis mais elevados e agressivos. Isso me colocava em um dilema que trouxe uma série de prejuízos a uma época da minha vida que nunca irá retornar.

     A história única imperou na minha vida da minha infância até o inicio da minha idade adulta , por isso refletir sobre essa fase dificíl da minha história só me faz perceber o quanto é nocivo o que a sociedade racista impõe as crianças e adolescentes negras lhes negando o conhecimento da história do negro,lhes negando o direito de saber dos nossos reis e rainhas, da nossa riqueza cultural, da nossa luta pela liberdade, dos grandes líderes negros e negras, da nossa literarura...Infelizmente a história do ponto de vista do negro não nos é passada na escola, o que lá aprendemos é sobre o sofrimento dos negros , sua passividade diante das dificuldades impostas pela escravidão e da generosidade de uma princesa que se sensibilizou resolvendo nos libertar. Essa escravização histórica pela qual eu passei fazia com que eu não me sentisse incluída e nem representada dentro dos espaços sociais, reduzindo a minha auto-estima e consequentemente o orgulho de ser negra.

    No 3º ano do ensino médio e com 17 anos conheci o quilombo educacional Stive Biko,o divisor de águas em minha vida.Ingressei no curso pré vestibular da instituição e lá percebi que eu estava em um ambiente diferente ,uma sensação de acolhimento e de conforto antes sentida apenas no aconchego familar fez com que eu pudesse ter prazer em estar em um local coletivo.Na Biko, eu pude conhecer uma outra história, uma história que me representava, comecei a me reconhecer e a me orgulhar de ser uma mulher negra com meu cabelo,meu nariz e com todas as outras características negras que antes sussurravam timidamente e logo passaram a gritar no meu corpo , no meu discurso e até mesmo em meus pensamentos.

     Esse conhecimento proporcionado pela Biko fez com que minha auto-estima se elevasse me auxiliando para que eu conseguisse passar no vestibular da UFBA, tarefa que antes eu considerava impossível .No ano de 2008, eu entrei na Universidade no curso de Secretariado Executivo, um curso importante com suas especificidades, mas que não contemplava um debate no que tange as questões sociais e racias.Inconformada com essa deficiência do curso, aliada a um prévio conhecimento do curso de Letras no ano de 2009 resolvi prestar novamente vestibular,passei e no início do ano de 2010 dando inicio a uma nova etapa da minha vida.

    Após cursar 2 semestres do curso de Letras e de me envolver bastante com quetões políticas, eis que encontro um outro ambiente onde volto a me sentir acolhida e segura o PET/COMUNIDADES POPULARES, programa que trabalha com questões que mexem diretamente com a minha essência. Mas essa já é uma outra história da minha vida que eu ainda não posso contar,pois continuo a catar as miçangas, não sei ao certo onde nem quantas vou precisar, mas adianto que serei a única responsavel pelo adorno do  colar Jaciara, já que agora aprendi e me apoderei do direito de montar e escrever uma história diferente para a mulher negra.                                                                               Jaciara Santos Nascimento

10 comentários:

  1. Parabéns pela escrita e do compartilhamento que fez com que me identificasse com muitas das linhas que o compõe,eu também participei do conexões de saberes e hoje sou fruto de uma semente lançada pelo programa que em outro formato me fez refletir sobre todas as questões expostats por você no texto,e como é bom nos reconhcermos e definirmos nossa identidade...em constante construção...
    Êa povo negro!!!!

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  2. Parabéns pela sua auto biografia, pois nossa história oral por muito tempo desfeita em sua moral de história científica agora como contribuintes conscientes podemos desmenti-los trazendo de volta a discussão da história dos "vencedores". porque nossa educação não foi uma educação falha, mas sim perversa e que ainda surte um efeito enorme nas mentes de muitos irmão livres dos grilhões de ferro porém presos pelo absenteísmo de pensamentos que os libertem pra sempre da diferença da tez (diferença essa que em nosso país restringe em muitos as oportunidades) por onde trilhamos o sucesso e o fracasso de nossas vidas não só se tratando de questões financeiras mas de raízes culturais e genealógicas para o fortalecimento de quem somos, de onde viemos e o que queremos para nossos descendentes.

    Sempre que postar algo, por favor me alerte pois gosto muito da troca de conhecimentos que me torne um "negro letrado e perigoso".
    Axé Jaci.

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  3. Jaci, parabéns por sua história e por suas palavras. Faço agora uma leitura mais de ampla de todo o processo racista da sociedade partindo do momento principal de "formação", a infância, o principal instrumento dessa "formação", a escola. Importante ter sua história no papel e suas reflexões. Parabéns pelo blog.
    Espero que possamos trocar muitas experiências e construir juntos tb uma nova história.
    beijos. Rinaldo.

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  4. Muito bom texto! Vc escreveu com propriedade. E nós negros devemos mesmo fazer alguma coisa pra mudar o quadro social racista, seu texto deve ser divulgado e refletido, terei prazer e orgulho em indicá-lo!

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  5. Cheia de esplendor! Viva a mulher negra, hoje e sempre guerreira!

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  6. Jaci, muito da sua história é conhecida por muitos negros, claro a exceção de estudar numa escola particular, pois, infelizmente aos negros só sobraram as públicas que mantém um racismo institucionalizado, onde o Estado insiste em manter livros didáticos onde vemos os negros em situações de sofrimentos e castigos. Mas percebemos em sua trajetória o quanto a educação e conhecimento desconstrói e reconstrói uma nova história e essa batalha de vasculhar o velho para que sigamos numa linha de estudo sobre todos os fatos referentes ao racismo que nos fazem ver hoje o quanto essa negritude é forte, não conseguirão nos exterminar, tentaram mas não vamos deixar que a verdade caía no esquecimento de nossas crianças e precisam saber que temos a nossa história. Sucesso, grande abraço.

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  7. Jaci, muito linda sua história...
    Até hoje não conseguimos se libertar desse racismo, no qual o negro sempre é o objeto, sempre é visto com coisa ruim, como ladrão, Onde nossa cultura sempre foi esquecida e descriminda por toda elite branca, onde eles tentam nos alienar, dizendo que pra ser bonito tem que ter os cabelos lisos...
    É isso preta, sucesso e sou sua fã viu...Rs!!! Parabéns!!!

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  8. Parabéns. Sucesso nesse empoderamento da escrita.

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  9. Parabéns moça! Sua reflexão sobre sua história a enriquece. Deixa de ser uma história comum, para trilhar uma outra trajetória...Que bom seria se todos pudéssemos contar nossas histórias sabendo tecer reflexões sobre o que nos acontece, apoderando-se assim, daquilo que somos, do que nos tornamos! Seu texto me instiga... para que eu possa conseguir escrever ao menos metade do que vc escreveu, com propriedade de mim mesma!
    Mais uma vez, parabéns!

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  10. Muito interessante sua história. Lembrei-me da minha infância numa pequena cidade no interior de São Paulo, povoada por imigrantes alemães, e onde fiz o primeiro ano do Ensino Fundamental. Até o primeiro dia de aula, eu, não havia notado que era negra. Foi sentada canto da sala e olhando ao redor que percebi a diferença. O tempo passou...e aos poucos assumi minha raça, meu cabelo sarará e hoje como professora tento ajudar na compreensão das diferenças.

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